
Sábios não sabem o que é bom ou
mal.
LEIAM esta história: "Um homem atirou uma
pedra em um cão. Enlouquecido com a dor, o cão latiu para a pedra, sem entender
que a causa de sua dor era o homem, e não a pedra". Da mesma forma,
pensamos que as formas, sons, cheiros, gostos e objetos de contato são as
fontes do nosso sofrimento e que, para superar o sofrimento, forma, som,
cheiro, gosto e toque devem ser todos destruídos. Nós não percebemos que o
nosso sofrimento está na forma
como vemos e usamos forma, audição, olfato, paladar e tato, porque vemos a
realidade através das cortinas escuras de nossas visões estreitas e desejos
egoístas.
No
nosso tempo, a luta entre o velho e o novo irá atingir o seu auge. Não acabou
ainda, e nós carregamos cicatrizes dessa luta em nossos corações. As questões
levantadas pelos filósofos contemporâneos nos fazem sentir perdidos e ansiosos.
Mentes confusas sugerem que a existência é sem sentido, até mesmo absurda, e
isso acrescenta outra camada de preto para os nossos corações escurecidos.
"A existência é falha. Seres humanos são repugnantes. Ninguém pode ter
esperança de ser bom. Não há maneira de embelezar a vida." Mesmo adotando
esses modos de pensar, as pessoas se apegam à ilusão de que somos livres para
ser quem nós queremos. No entanto, na maioria das vezes estamos apenas reagindo
aos ferimentos gravados em nossos corações ou agindo devido ao nosso carma
coletivo.
Quase
ninguém ouve o seu verdadeiro eu. Mas quando não somos nós mesmos, qualquer
liberdade que pensamos que temos é ilusória. Às vezes, nós rejeitamos a liberdade
porque temos medo dela. Nossos verdadeiros eus estão enterrados sob camadas de
musgo e de tijolos. Temos de romper essas camadas e sermos liberados, mas
estamos com medo de que possamos quebrar também.
Temos
que nos lembrar repetidamente que as camadas de musgo e de tijolos não são
nosso verdadeiro eu. Quando você percebe isto, verá cada fenômeno, cada dharma,
com novos olhos. Comece por olhar profundamente para si mesmo e veja o quanto é
milagroso seu corpo. Nunca há qualquer razão para olhar para o seu corpo físico
com desprezo ou desrespeito. Não ignore as coisas que estão ao seu alcance. Nós
não as valorizamos. Nós até as amaldiçoamos.
Considere
seus olhos. Como podemos tomar uma coisa tão maravilhosa como os nossos olhos
como algo certo? No entanto, é o que fazemos. Nós não olhamos profundamente
para essas maravilhas. Nós as ignoramos e, como resultado, nós as perdemos. É
como se nossos olhos não existissem. Só quando ficarmos cegos é que vamos
perceber o quão preciosos nossos olhos eram, e então será tarde demais. Uma
pessoa cega que recupera sua visão entende a preciosidade de seus olhos. Ela
tem a capacidade de viver feliz aqui na Terra. O mundo da forma e da cor é um
milagre que oferece alegrias intensas todos os dias.
Depois
de termos essa percepção, não poderemos olhar para o céu azul e as nuvens
brancas sem sorrir. O mundo revela constantemente a sua frescura e esplendor.
Uma pessoa cega que recupera sua visão sabe que o paraíso é aqui, mas em pouco
tempo ela também vai começar a tomá-lo como certo novamente. O paraíso chega a
parecer lugar-comum, e, em questão de semanas ou meses, ela vai perder a
consciência de que está no paraíso. Mas quando os nossos "olhos
espirituais" são abertos, nunca perdemos a capacidade de ver a maravilha
de todos os fenômenos, todas as coisas.
Quando
eu era um jovem monge me foi ensinado que os maiores sofrimentos eram
nascimento, doença, velhice, morte, sonhos não realizados, a separação de seus
entes queridos, e contato com aqueles que nos desprezam. Mas o verdadeiro
sofrimento da humanidade reside na forma como olhamos para a realidade. Olhe e
você vai ver que o nascimento, a velhice, a doença, a morte, as esperanças não
cumpridas, a separação de seus entes queridos e contato com aqueles que nos
desprezam são também maravilhas em si mesmos. Eles são todos aspectos preciosos
da existência. Sem eles, a existência não seria possível. O mais importante é
saber como navegar as ondas da impermanência, sorrindo como quem sabe que nunca
nasceu e nunca vai morrer.
Aqui
na América, eu sinto uma saudade intensa do som familiar da língua vietnamita.
Há momentos em que penso que se apenas eu pudesse ouvir uma voz familiar por
dois minutos, poderia ser feliz o dia
todo. Uma manhã Phuong telefonou. Parecia completamente natural estar falando
com ele. Apesar de não termos falado muito, eu fiquei de bom humor o resto do
dia. Desde então, sempre que eu falo com um amigo, escuto com toda a minha
atenção as suas palavras e o tom de sua voz. Como resultado, passei a ouvir as
suas preocupações, sonhos e esperanças.
Não
é fácil ouvir tão profundamente a ponto de entender tudo o que a outra pessoa
está tentando te dizer. Mas cada um de nós pode cultivar a capacidade de
escutar profundamente. Eu já não sou indiferente a fenômenos que passam diante
dos meus sentidos. Uma folha, a voz de uma criança - estes são tesouros da
vida. Eu olho e escuto profundamente, a fim de receber as mensagens que
transmitem esses milagres.
A
separação de seus entes queridos, decepções, impaciência com coisas
desagradáveis - tudo isso também são coisas construtivas e maravilhosas. Quem
somos é, em parte, resultado de nossas experiências desagradáveis. Olhar
profundamente nos permite ver os elementos maravilhosos contidos nas fraquezas
dos outros e nas nossas próprias, e estas flores de discernimento nunca vão
murchar. Com este insight, vemos que o mundo do nascimento e da morte e o mundo
do nirvana são os mesmos.
Uma
noite, enquanto praticava meditação sentada, senti o desejo de gritar, "O
trabalho de todos os Budas foi completamente cumprido!" Não é possível
julgar qualquer evento simplesmente como afortunado ou como infortúnio, bom ou
ruim. É como a velha história sobre o agricultor e o cavalo. Você deve viajar
através do tempo e espaço para se conhecer o impacto de qualquer evento. Todo o
sucesso contém algumas dificuldades, e cada fracasso contribui para o aumento
da sabedoria ou o sucesso futuro. Cada evento é ao mesmo tempo feliz e infeliz.
Sorte e azar, bom e mau, existem apenas em nossas percepções.
(Do livro de Thich Nhat Hanh -
"Fragrant Palm Leaves” – Diário de Thich Nhat Hanh - Tradução Leonardo
Dobbin)
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